O Menino Nazireu

por Samir de Oliveira Ramos

Em busca de um sentido

A motivação de um trabalhador superqualificado pode estar na Teoria da Expectativa de Victor Vroom, que seria tentar responder aos três anseios de uma pessoa que desenvolve determinada tarefa: Valência, Instrumentalidade e Expectância .

Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo.

Juízes 17:6

Num bangalô sobre o mar, Joice observava atentamente, pelo piso de vidro no meio da sala, os peixes coloridos sob seus pés. Iam e vinham no fundo do mar como se estivessem restritos àquele quadrado, quando na verdade tinham à sua disposição todas as águas do Pacífico.

Aquela autolimitação lhe era familiar.

O seu último dia na Polinésia Francesa parecia fechar um ciclo de crescimento e aprendizado. Foram dias de descanso e reflexão. A história que tinha acabado de ler – e que não lhe saía da mente – parecia resumir seus três últimos anos na Benkis Corporation.

Enquanto a tarde ia sendo dominada por uma brisa fresca que trazia do monte Otemanu aromas vulcânicos que se misturavam aos da vegetação nativa, Joice assentou-se na escada de madeira do deck do bangalô. Fitando a vastidão do mar, deixou-se levar mais uma vez pela história daquele menino.

Terra Prometida, 1200 a.C. Era o tempo de juízes [1]. Os filhos de Israel fizeram o que era mau [2] perante o Senhor e este os entregou nas mãos dos filisteus por longos quarenta anos. Além de cruéis, os filisteus descobriram o segredo do aço na era do bronze, impondo pesado jugo às tribos e reinos que conquistavam. O castigo era severo, mas Deus não abandonou o seu povo.

Atribuição e Capacitação para Tarefa

Manoá, homem israelita da linhagem de Dã [3], vivia com sua mulher num pequeno vilarejo chamado Zorá. Ela era estéril e não tinham filhos.

Certa vez, o Anjo do Senhor apareceu à sua mulher e vaticinou que, mesmo sendo ela estéril, daria à luz um filho. A cabeça do menino não poderia conhecer navalha, pois o menino seria nazireu [4]consagrado a Deus desde o ventre materno.

Ele também ordenou que ela, a própria mãe, se guardasse do vinho ou qualquer bebida forte e também de comidas imundas, pois o seu filho iria começar a livrar a Israel do poder dos filisteus.

A mulher, tão logo entrou em casa, contou ao marido sobre o homem de Deus que conhecera e tudo o que ele lhe disse acerca dela e do futuro filho. Manoá orou ao Senhor para que permitisse um novo encontro, para que aquele sábio homem lhes ensinasse como deveriam proceder com o menino que lhes iria nascer.

Deus ouviu sua oração e o Anjo de Deus [5] se aproximou mais uma vez da mulher, quando ela se achava assentada no campo. Como não estivesse com o marido no momento da chegada do Anjo, apressou-se por noticiar ao marido a chegada daquela figura singela, que transmitia paz e segurança.

– És tu o que falaste antes à minha mulher? – perguntou Manoá apressadamente, enquanto se aproximava daquela figura quase majestosa.

– Eu sou.

Sem saber que se tratava do próprio Filho de Deus, em uma de suas muitas aparições ao longo da história da humanidade, Manoá estava ansioso e curioso por detalhes acerca do filho tão sonhado.

– Como devemos proceder com o menino?

                E então o Anjo repetiu exatamente as mesmas instruções ditas à mulher, que consistiam no voto de nazireado. Estas exigências particulares pareciam traduzir os seguintes princípios: manter-se mentalmente são (abster-se de vinho e de bebida fermentada), em sujeição a Deus (simbolizado pelo não cortar o cabelo) e manter-se cerimonialmente puro (não tocar em cadáveres e em comidas consideradas imundas).

                Manoá, exultante pela possibilidade de ter sua descendência perpetuada, quis ser grato ao portador das boas novas com o melhor que sua casa poderia oferecer: carne assada de cabrito e pão. O Anjo de Deus recusou educadamente, orientando-o a oferecer holocaustos ao Senhor dos Exércitos, ao Criador dos céus e da terra.

                – Qual é o teu nome, para que, quando se cumprir a tua palavra, te honremos? – perguntou Manoá.

                – Por que perguntas assim pelo meu nome, que é maravilhoso? [6]

                Aquele israelita de meia idade e sua mulher, cheios de esperança, prepararam alegremente um holocausto às vistas do Anjo, e o depositaram sobre uma rocha, apresentando-o ao Senhor.

Enquanto Manoá e sua mulher observavam, eis que a chama do altar subiu para o céu e nela o Anjo de Deus. No mesmo instante caíram com o rosto em terra e tiveram a verdadeira noção de quem lhes visitara. Manoá temeu por sua vida, por ter visto a Deus. Sua mulher, porém, lhe disse que se Deus quisesse matá-los, já o teria feito. Além disso, não teria aceitado o holocausto, muito menos lhes revelado tais coisas.

Sansão – este foi o nome dado ao menino – nasceu num dia quente e seco. Seus pais observavam tudo o que lhes fora designado pelo Anjo. Nenhum detalhe lhes escapava. E o menino cresceu e Deus o abençoou. O Espírito do Senhor o incitava com força e coragem, na região de Maané-Dã, entre Zorá e Estaol.

A Harvard Business Review divulgou um artigo, de Andrew O´Connell sobre os trabalhadores superqualificados. No artigo são apresentadas razões para que as empresas não descartem os candidatos que possuem maior qualificação que a exigida para o desempenho de um cargo ou função. Esta argumentação foi baseada em duas pesquisas, uma com 5000 empregados norte-americanos e outra com 244 empregados turcos. As pesquisas concluíram que empregados superqualificados têm desempenho superior aos seus colegas que possuem exatamente o “skill” necessário ao desempenho da função. Contudo, em seu último parágrafo o artigo apresenta a necessidade de lidar com o problema que traz a superdotação para o exercício de uma função: O sentimento do profissional que pensa “Posso fazer muito mais que isto! Talvez eu seja bom demais para este trabalho”. Como solução, é apresentada a necessidade de dar ao superqualificado uma maior autonomia de ação e decisão em sua função.

 A tarefa incluía saber lidar com os filisteus

Numa visita à cidade de Timna, Sansão se enamorou de uma das filhas dos filisteus. Apesar do protesto dos pais, que preferiam que ele escolhesse uma mulher do seu próprio povo, Sansão insistia em tomá-la como mulher. Seus pais tiveram que ceder aos apelos do jovem nazireu, que afirmava com toda a força da alma: “só desta me agrado”. Os pais não entendiam, mas estes já eram desígnios de Deus.

No dia marcado, puseram-se na estrada ele e seus pais.

Enquanto se aproximava das vinhas de Timna, sucedeu que um leão novo, bramando, lhe saiu ao encontro. Sansão, inspirado pelo Espírito de Deus, saiu da estrada, desceu a pequena colina e rasgou o felino ao meio, como se fosse um cabrito, fazendo uso apenas de suas mãos vazias.

O jovem israelita não contou a seus pais o que tinha feito, limitando-se a continuar sua caminhada até Timna, onde anunciou suas intenções e confirmou seus sentimentos diante da bela jovem filisteia.

Alguns dias depois, Sansão voltou com seus pais pelo mesmo caminho, para tomá-la como mulher. Afastando-se novamente da estrada principal, foi ver o corpo do leão morto e, para sua surpresa, encontrou dentro da carcaça do animal um enxame de abelhas com mel. Tomou um favo nas mãos e saiu comendo. Quando alcançou o pai e a mãe, deu-lhes do mel e eles também comeram. Sansão não lhes revelou que o mel vinha do corpo do leão.

Se  fui capaz de ver mais longe, é porque me apoiei em ombros de gigantes.

Isaac Newton

Joice afundou os pés nas águas transparentes do pacífico, enquanto pensava em como Sansão havia quebrado o seu voto. Para ela, o fato de ele ter tocado num animal morto não era o principal; Sansão sabia o que tinha que fazer desde muito pequeno: destruir filisteus, libertando o seu povo da opressão. Tinha sido maravilhosamente capacitado por Deus para aquela importante missão, mas parecia não entender o verdadeiro significado do seu chamado. Talvez achasse esta tarefa menor, diante das muitas possibilidades para o uso de sua força, de sua superqualificação.

Vinte e cinco anos de experiência gerenciando pessoas mostraram-me que esta autonomia é de pouca valia em médio prazo. Se a tarefa está aquém da capacidade de quem a realiza, qualquer soberania dada ao profissional só adia, por um curto período, o seu sentimento de frustração e insatisfação com a tarefa realizada. Povoar um cargo com pessoas preparadas para exercer funções mais desafiadoras, só funciona bem durante um tempo e se houver a visualização, por parte do ocupante do cargo, de uma luz ao final do túnel de sua vida útil naquela função.

Para Joice, faltava a Sansão uma consciência maior do seu dom. Enquanto ele não despertasse dentro de si uma força maior que a dos seus músculos, da sua instrumentalidade, capaz de lhe impulsionar à descoberta do verdadeiro sentido de sua vida, a sensação de frustração seria sua eterna companheira. Nenhuma tarefa seria suficientemente boa, digna e útil. Tudo pareceria desprovido de sentido, de cor, de sabor.

Assim foram os anos de Joice na Benkis Corporation. Tinha acabado de concluir o mestrado quando foi contratada. Colocaram-na numa função aquém de suas qualificações. Prometeram rever sua situação tão logo o cenário melhorasse. Três anos se passaram. O que no início parecia um desafio acabou virando rotina enfadonha. A situação deixou-a confusa, atordoada. Fitava nos olhos cada membro da sua nova equipe e não conseguia entender a motivação que impulsionava aqueles jovens a alcançar ótimos resultados. Se dependessem dela, do seu ânimo, da sua liderança, estariam fadados ao fracasso. Como uma roupa apertada, a função lhe consumia muita energia, impondo-lhe limites de adaptabilidade nunca antes experimentados. No último ano estava sempre exausta, sentindo-se preterida, esquecida e desmotivada. Apesar de dominar as tarefas que realizava, não pareciam ter sentido, encontrar eco dentro do seu ser.

De certa forma, Joice parecia compreender as dificuldades de Sansão. Deus não havia lhe dito COMO destruir os filisteus nem QUANDO começar.

Segundo o costume, o banquete era proporcionado pelo noivo. Trinta companheiros foram convidados para estarem com Sansão.  Durante os setes dias que duravam as bodas, os convidados comiam, bebiam, dançavam e festejavam a união dos noivos e consequentemente das duas famílias.

A certa altura do terceiro dia da festa, Sansão tomou a palavra e propôs um enigma a todos os presentes: “do comedor saiu comida, e do forte saiu doçura”. A quem decifrasse o significado antes de a festa acabar, daria trinta camisas e trinta vestes festivais. Caso não decifrassem e a festa acabasse, era Sansão quem ganharia a mesma quantidade de camisas e vestes de todos os presentes. Os filisteus se sentiram desafiados e em vão tentavam decifrar o intricado enigma. Com o passar dos dias, como não conseguissem a resposta certa, ameaçaram atear fogo à mulher de Sansão e à casa do seu pai caso não persuadisse o marido a revelar-lhe o segredo. Temendo pela sua vida e pelos seus, a mulher chorou insistentemente diante de Sansão para que ele lhe revelasse o segredo. Tanto o importunou que ele, por fim, acabou contando tudo a ela, que repassou a solução do enigma a seus patrícios.

No final do sétimo dia, antes de o sol se pôr, os homens daquela cidade falaram a Sansão: “o que é mais doce do que o mel e mais forte do que o leão?”.

Sansão percebeu que tinha sido enganado e se irou de tal forma que matou trinta asquelonitas [7], despojou-os e deu as suas vestes aos que declararam o enigma, como pagamento da aposta. Depois destas coisas, subiu à casa do seu pai.

A força não provém da capacidade física, e sim de uma vontade indomável!

Mahatma Gandhi

Após algum tempo, voltou ao local para estar com a sua mulher. Apesar do formalismo, ao invés da noiva mudar-se para a casa de Sansão, como normalmente se fazia, ela ficou com sua própria família e seu marido ia visitá-la.  Foi quando, nesta primeira visita, Sansão descobriu que ela tinha sido dada ao seu companheiro de honra pelo próprio pai da moça.

Devido ao incidente do enigma, o casamento não foi consumado ao final da festa. Numa tentativa de diminuir a vergonha da noiva, foi arranjado às pressas um segundo casamento com o companheiro de honra ou padrinho de casamento de Sansão.

O nazireu considerou injusta a reação do sogro. Desta feita, usando raposas ou coiotes (como alguns sugerem), com tochas presas aos rabos, incendiou as searas dos filisteus, tanto o cereal quanto as vinhas e olivais. Sansão vivia dominado por um turbilhão de emoções sobre as quais não tinha nenhum controle.

Como represália pela queima da sua produção, os filisteus queimaram vivos a ex-mulher de Sansão e seu pai. Ao saber do ocorrido, o jovem de força descomunal buscou vingança, iniciando uma grande carnificina, que resultou em muitas baixas no exército inimigo. Após isto, entendendo que sua presença colocava em risco seu povo, foi habitar sozinho na fenda da rocha de Etã.

Naquele momento, Joice sentiu a mesma solidão que constrangeu os ossos de Sansão. Era uma memória recente, pois em muitos momentos teve vontade de se isolar. Na função em que estava, tinha que vencer a sensação de não pertencimento e aprender a lidar com a rotina, sua equipe, seu chefe, seus pares. Acabou se esquecendo desses itens tão importantes quando priorizou apenas as emoções.

O que dá valor a uma xícara de barro é o espaço vazio que há entre suas paredes.

Lao Tzu

A equipe tem que ser aliada, não inimiga.

Como resposta, o exército filisteu acampou-se contra Judá, reino do povo do jovem nazireu. Surpresos, questionaram os filisteus sobre o motivo de tal investida, no que obtiveram resposta: “Subimos para amarrar Sansão, para lhe fazer a ele como ele nos fez a nós”. Então, três mil homens de Judá foram até onde estava Sansão e anunciaram que iriam amarrá-lo e entregá-lo ao exército dominador. O forte jovem concordou com os termos, pedindo apenas que não fosse morto pelo seu próprio povo.

Sansão foi amarrado com duas cordas novas, e levado para ser entregue aos filisteus.  Ao chegar ao acampamento inimigo, eles começaram a gargalhar e gritar, comemorando o feito. Neste momento, o Espírito do Senhor tomou-o de tal maneira que ele partiu as cordas que o prendiam como se fossem fios de linho queimados. Com uma queixada de jumento ainda fresca que encontrou no chão, feriu mil homens, e este fato é comentado até os dias de hoje. Assim clamou ao Senhor quando terminou seu intento e jogou a queixada no chão:

– Por intermédio do teu servo deste esta grande salvação; morrerei eu, agora, de sede e cairei nas mãos destes incircuncisos?

E o Senhor fendeu uma rocha e dela saiu água, com a qual Sansão matou sua sede, encontrou alento e reviveu.

Inteligência emocional permite a leitura certa

Joice sentia o frescor do vento entrando em seus cabelos quando a cena em que Sansão bebia água da rocha se construía em sua mente. Decididamente a história do jovem nazireu, de força extraordinária, trazia grandes ensinamentos para ela.

O enigma do leão e do mel, por exemplo, além de revelar uma profecia messiânica [8] da mais alta profundidade, continha a chave para o encontro de Sansão consigo mesmo. Na raiz daquelas palavras residia a essência do seu chamado: força e doçura. Ambas em doses fartas, como são comuns a um Deus onisciente e benfazejo.

 No seu plano divino de forjar um povo diferenciado, fazê-lo andar por quarenta anos no deserto ou ser subjugado pelos filisteus durante o mesmo período de tempo, era na verdade um ato de amor. E Sansão foi abençoado com porção abundante do seu Espírito, dotando-o Deus de uma força inacreditável, força de muitos homens, capaz de destruir exércitos para pôr fim ao jugo de um povo idólatra e sanguinário.

 É interessante observar – e Joice sabia-o bem – que Deus, assim como o povo, esperava mais do jovem nazireu.  Não apenas a força do seu braço, mas a força do seu espírito, do seu ser. Esta última ainda carecia de retoques e era exatamente isso que Deus estava fazendo.

A doçura também foi derramada em porção generosa, contendo, porém, um aspecto positivo e um negativo. A força dos seus braços proporcionou-lhe fama, poder e…mulheres. Sansão podia usufruir o melhor que a terra podia dar. Nada lhe resistia. Esta era um aspecto até certo ponto positivo do seu chamado.

Entretanto, se enredava como uma criança, em palavras e gestos doces e traiçoeiros, afastando-se do alvo, do foco, da direção que estava marcada na sua bússola interna. Esta era o aspecto negativo.

Deus, em sua infinita benevolência, usava os próprios deslizes e fraquezas do guerreiro para cumprir seu plano perfeitíssimo. Não o tolhia do livre arbítrio, mas improvisava (!) com o que tinha nas mãos – homens imperfeitos – para levar a cabo seus desígnios.

A história conta sobre uma prostituta com quem ele coabitou em Gaza, quebrando novamente seu voto de nazireado, e como Deus não se afastou dele, preservando-o [9].

Joice via em suas atitudes na Benkis uma grande semelhança com as de Sansão. Ela era estourada, sanguínea. Muitas vezes, antes de entender toda a proposta, já se posicionava precipitadamente. Nesses anos viveu e causou grandes constrangimentos, logo ela que “sobrava” na função.

Sem ser provada, a paciência dura.

Shakespeare

Grandes tarefas são para grandes homens

A última parte da história do menino nazireu ganha cores vivas quando ele conhece a bela e traiçoeira Dalila, que vivia no vale de Soreque.

Sansão se afeiçoou a Dalila desde a primeira vez que a viu. Possuidora de curvas perfeitamente torneadas, que deixavam rastros de aloé e nardo por onde passavam, tinha um olhar meigo e penetrante. Seus cabelos quase da cor do trigo evocavam galopes à beira-mar, sonhos de liberdade, juras secretas e mistérios a serem desvendados.

Os príncipes dos filisteus, ao saberem dos galanteios do mancebo israelita, subornam a belíssima mulher com as seguintes palavras: “persuade-o e vê em que consiste a sua grande força e com que poderíamos dominá-lo e amarrá-lo, para assim o subjugarmos; e te daremos cada um mil e cem siclos de prata [10]”.

Dalila, fazendo uso dos seus cantos e encantos, silêncios e olhares, partidas e surgimentos repentinos, usando o frescor da manhã e as cores do pôr do sol, vai-se deixando dominar pelos braços fortes de Sansão. Com todo cuidado, como se estivesse a alimentar um leão feroz, enquanto o conduz para a jaula, é caça e caçadora, vítima e vitimadora.

E nesse jogo de véus, aromas, palavras sussurradas ao ouvido, toques e beijos úmidos, por três vezes Dalila intima Sansão a contar-lhe o motivo da sua força e a maneira de anulá-la.

Na primeira vez, o jovem nazireu afirma que tendões frescos, ainda não secos, podiam dominá-lo totalmente; na segunda vez fala sobre o poder de cordas novas, com as quais ainda não se tenha feito obra nenhuma; por fim, na terceira vez confessa que se as sete tranças da sua cabeça fossem tecidas com a urdidura da teia e firmadas com pinos de tear, então estaria fraco como qualquer homem.

Nas três vezes Dalila ingenuamente seguiu à risca as orientações do seu amante: amarrou-o com tendões frescos, com cordas novas, e teceu suas tranças no tear, fixando-as com pinos. Em todas as vezes, quando ela despertou seu amante do sono com o grito de “Os filisteus vêm sobre ti, Sansão!”, ele arrebentou o que o detinha  como se fossem fios velhos e desgastados.

A bela jovem se amargurou sobremaneira.

– Como dizes que me amas se não está comigo o teu coração? Já três vezes zombaste de mim e ainda não me declaraste em que consiste a tua grande força.

Importunando-o dia e noite, como quem aperta devagarzinho um nó de véu sobre uma jugular aflita, tanto fez e tanto fez que Sansão desvendou-lhe por completo o coração.

– Nunca subiu navalha à minha cabeça, porque sou nazireu de Deus, desde o ventre da minha mãe; se vier a ser rapado, ir-se-á de mim a minha força, e me enfraquecerei e serei como qualquer outro homem.

Joice se levantou de um pulo da escada do deck, com os pés ainda molhados, e começou a andar, de um lado para o outro no bangalô.

– Vadia!

Seus sentimentos se misturavam. Lembrava-se da supervisora Sheila, com quem abriu seu coração e por quem foi muito mal interpretada, ocasionando sua saída; e não se conformava com a traição de Dalila.

A jovem amante mandou chamar imediatamente os príncipes dos filisteus, dizendo: “subam mais esta vez, pois, agora, ele me descobriu todo o seu coração”. Os líderes do exército inimigo subiram com o dinheiro e esperaram Dalila fazer dormir Sansão em seus joelhos. Suas sete tranças foram rapadas por um soldado, ao comando da sedutora mulher.

Quando ela gritou novamente “os filisteus vêm sobre ti, Sansão!”, o filho único de Manoá se ergueu de um salto crendo possuir a mesma força de antes, mas o Senhor já havia se retirado dele [11]. Foi facilmente dominado pelos filisteus, que lhe vazaram os olhos e lhe levaram algemado até Gaza, onde foi posto para trabalhar como um boi, virando uma pesada pedra de moinho, juntamente com outros escravos.

 Agora debruçada sobre o parapeito de madeira do bangalô, Joice olhava a areia branca do fundo do mar, como a procurar os rastros ancestrais dos pés de Sansão empurrando o chão para mover o moinho.

Não era mais o ãnima divino que fazia ranger o eixo do moinho, mas apenas e tão somente a força dos músculos de um homem entregue a suas próprias paixões, ao destino que ele pensava escrever. Sansão tremia. O único alento naquela tarefa era saber a direção certa que os grilhões agora lhe ensinavam e impunham, pois seus olhos físicos já não viam mais.

A força que lhe havia sido dada para um fim específico – destruir os inimigos do seu povo – tinha sido anulada. O pouco de força que lhe restou, – e que era a sua própria força limitada de homem -, agora estava sendo usada à exaustão exatamente para moer os grãos que iriam alimentar seus inimigos, tornando-os mais fortes e vigorosos, mais capazes de continuar prevalecendo sobre seu povo.

Mas foi exatamente naquela roda da vida, andando em círculos, longe do seu povo e sentindo-se abandonado, remoendo em cada peso de grãos estrangeiros as suas próprias angústias e medos, que Deus estava forjando a alma do jovem nazireu.

O Senhor nunca abandona um filho seu. Poderia ter restaurado miraculosamente os seus olhos vazados, mas tinha algo melhor a fazer. Em cada volta, em cada círculo completado, a visão espiritual de Sansão ia se aprimorando, enquanto cenas de sua vida eram revistas agora sob um novo ângulo.

Se por um lado, a estratégia dos filisteus acabou por fazer Sansão quebrar o voto, por outro lado a luta daquele povo sanguinário não era contra os israelitas, mas contra o próprio Deus de Israel – o mais perfeito estrategista. E o Senhor, em sua onisciência, onipresença e infinita sabedoria, dava prosseguimento ao plano que nunca pode ser frustrado.

O Criador da via láctea, que age com a mesma excelência no micro e no macrocosmo, ao mesmo tempo em que ensinava duras lições ao seu juiz [12], também fazia crescer os cabelos da sua cabeça.  Era a aliança que precisava ser restaurada pelo novo homem no qual Sansão estava se transformando.

Podemos sentir o vento como uma brisa refrescante ou como um furacão devastador. Depende do estado de espírito.

Legrand

Joice agora pensava em sua vida. O sol já se punha nas Polinésias Francesas e as primeiras estrelas começavam a aparecer no firmamento.

A função que exerceu por três anos foi a “pedra de moinho” que precisava empurrar. Durante algum tempo a murmuração tinha tomado conta do seu ser, e momentos e oportunidades importantes passaram despercebidos sob seus olhos.

Estava cega. A altivez também dificultou seu aprendizado. O fato de se achar maior que a função que exercia não lhe permitiu exercer com excelência o que lhe era designado e uma frustração acabou gerando outra, e mais outra e outra.

A atividade em si é considerada recurso instrumental para chegar a algum resultado de valor. Se isto é correto, um superqualificado para uma função pode tirar dela muito pouco no que diz respeito ao aprendizado de fazer a tarefa, mas pode realizá-la com grande afinco e motivação se perceber que ela vai leva-lo a outra atividade mais compatível com o seu preparo e intelecto.

Os príncipes dos filisteus se ajuntaram para festejar e oferecer grande sacrifício a seu deus Dagom.

 – Nosso deus nos entregou nas mãos a Sansão, nosso inimigo, que destruía a nossa terra e multiplicava os nossos mortos. – afirmavam exultantes.

No meio de toda aquela alegria, resolveram trazer Sansão do cárcere para diverti-los, para que zombassem dele.

Ora, aquela reunião se dava num local magnífico, muito amplo, onde estavam reunidos mais de três mil homens e mulheres, todos filisteus, dentre os quais os príncipes daquele povo. Toda a estrutura suntuosa era apoiada por poucas colunas adornadas com relevos estranhos. Grandes estátuas do deus Dagon podiam ser vistas em todas as direções.

No meio de todo aquele alvoroço, um Sansão acorrentado e cego era trazido lentamente, puxado por um menino. No trajeto que pareceu durar uma eternidade, parecia poder enxergar cada rosto que sorria, cada boca que bebia e falava e gritava, cada mão que levava comida à boca, servia e jogava perfumes nas estátuas.

Sansão sentiu uma imensa paz invadir seu ser. Aquele momento único, cheio de significado, para o qual tinha sido comissionado desde o ventre de sua mãe, estava acontecendo. Não havia passado nem futuro, apenas o agora. Sentia-se no centro da vontade de Deus, no único lugar do universo onde poderia estar naquele momento, exatamente entre as colunas que sustentavam aquele lugar.

A maior obra é deixar-se (re)construir a si mesmo

Uma grande motivação, alegria e intrepidez invadiu novamente seu coração, aquecendo-o e acelerando-o, como acontecia nos melhores anos. Pelo eco que vinha do teto, podia precisar que o pé direito daquela construção passava de trinta metros. Sentiu nos seus músculos em chamas um desejo de liberdade, e clamou em alta voz:

– Senhor Deus, peço-te que te lembres de mim, e dá-me força só mais esta vez, ó Deus, para que me vingue dos filisteus, ao menos por um dos meus olhos.

Abraçou-se Sansão com as duas colunas do meio, fez força sobre elas, e disse:

– Morra eu com os filisteus!

O templo filisteu possuía um átrio aberto no centro; as pessoas sobre o telhado podiam observar as atividades de adoração sendo realizadas. A suntuosa construção desabou em segundos sobre os príncipes e todo o povo que nela estava; foram mais os que ele matou na sua morte do que os que matara na sua vida.

Sansão foi sepultado no mesmo sepulcro de Manoá, seu pai, entre Zorá e Estaol, e é conhecido até os dias de hoje como um dos heróis da fé.

Joice agora fitava as estrelas no céu. Aquele lugar especial no arquipélago de Bora Bora era perfeito para ser o seu ponto de partida para uma nova vida. Ao retornar ao Brasil, um novo emprego, numa nova cidade, aguardavam por ela.

A velha Joice morreu com Sansão, forçando as colunas pesadas do seu arcaico heroísmo, mas com a fé de que iriam desmoronar. A silhueta do monte Otemanu, banhada pela lua, era a única testemunha das lágrimas que rolavam pelo seu rosto. O oceano Pacífico, durante aqueles dias, foi tão próximo que poderia ser considerado um velho amigo, a paz para sua alma. Ele ajudou-a a ter um conhecimento mais profundo sobre Deus e sobre si mesma.

Enquanto aguardava o serviço de hotel vir buscar suas malas, Joice afirmava para o céu daquele lugar que Sansão não havia se suicidado. Na verdade, ele tinha encontrado a razão de toda a sua vida, o motivo pelo qual valeu a pena estar no mundo.

Ele cumpriu, como o arquétipo do herói, a dinâmica de honra e vergonha imposta por Deus e tão comum no mundo antigo. Com o preço da própria vida, entregue de livre e espontânea vontade, cumpriu o que lhe fora designado, mesmo que à custa de muitos percalços e sofrimentos.

Sua alma, como a de Sansão, estava livre.

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[1] Juízes é um livro do Velho Testamento, vem depois do Livro de Josué e antes do Livro de Rute e retrata um período entre 1200 e 1020 AC, descrevendo a continuação da conquista da Terra Prometida e a vida das tribos, até o estabelecimento do primeiro reinado. Era um tempo de democracia tribal, onde “juízes” levantados por Deus deliberavam sobre os mais diversos assuntos, unindo e liderando as tribos na luta contra os inimigos. Chegados apenas recentemente à terra prometida, os israelitas tinham dificuldades para manter o controle, a unidade e a pureza religiosa.

 [2] Adorar outros deuses.

 [3]  era uma das 12 tribos de Israel. Nesse tempo, muitos membros dessa tribo já haviam se mudado para o Norte.

 [4] Nazireu (do hebraico nazir, da raiz nazar: “consagrado”, “separado”) é o termo que designa uma pessoa que se consagra a Deus por um tempo determinado. O voto de nazireado (ou nazireato) foi institucionalizado e regulamentado na Torá, no Livro de Números 6:1-21. Em virtude desta consagração, o nazireu devia abster-se de tomar certos alimentos e bebidas fermentadas, de cortar o cabelo e tocar em cadáveres.

 [5] Para a maioria dos estudiosos, Anjo do Senhor com “A” maiúsculo, na literatura bíblica, significa o próprio Filho de Deus.

 [6] Esta frase confirma que se tratava de Jesus, pois em outros trechos da Bíblia é dito que seu nome é maravilhoso e está acima de todo nome.

[7] Habitantes de Asquelon (ou Ascalon), uma cidade dos filisteus, que distava 40 km do local onde estava sendo realizada a festa. Embora a matança pareça arbitrária, os asquelonitas já tinham sido condenados à morte por Deus em Ex23.31.32 e Dt7.1,2. Sansão foi simplesmente o executor da justiça de Deus, aparentemente sem se dar conta disto.

[8] Jesus é chamado de “O Leão da tribo de Judá” em muitas passagens bíblicas. Apesar da sua força espiritual, ele também era chamado de o “Bom Pastor”, aquele que dá a vida pelas suas ovelhas, pela mansidão, pela doçura dos seus ensinamentos.

[9] O fato de Deus usar os desejos e ações de Sansão para realizar seus propósitos não quer dizer que ele aprovasse todas as ações do juiz.

[10] Mil e cem moedas de prata correspondem hoje a 15,5 kg de prata (de cada príncipe).

[11] A força de Sansão não estava nas tranças, mas na presença de Deus na vida dele.

[12] Sansão foi um dos juízes levantados por Deus para orientar seu povo. A tradição judaica outorga a Sansão, da tribo de Dã, o título de “último dos juízes”, uma vez que tanto Eli como Samuel exercem a seguir seus juizados na qualidade de sacerdotes.

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Sob a ótica da Gestão de Pessoas

Uma vida com tanto significado, tão cheia de promessa, como a de Sansão, não poderia ter sido em vão. Como era possuidor de uma força descomunal, sobressaía-se no meio do povo, que o via como um herói nacional, capaz de conquistar a terra que lhes fora prometida por Deus. Todos depositavam a esperança nos braços fortes de Sansão.

Mas o homem de braços rijos e fortes, força inacreditável, tropeçava nas mulheres e nos próprios sentimentos. De um herói são esperadas atitudes concretas, não devaneios. 

Deus fundara uma nação com a finalidade de preparar o caminho para a vinda do Redentor da raça humana. O Criador estava resoluto quanto a manter essa nação, mesmo sabendo da sua idolatria e perversidade. Ele realmente a sustentou. Se não tivesse havido líderes como os juízes (por mais falhas humanas que tivessem) e se Deus não tivesse feito intervenções miraculosas nos tempos de crise, Israel teria sido exterminado.

Vencemos quando morremos para nossas ficções e perdemos nossas falsas onipotências. Um vencedor nunca é um herói. É um de nós apenas – lembra a morte.

Elienai Cabral Júnior

Na Bíblia, as histórias dos heróis sempre revelam mais sua humanidade do que suas virtudes. Geralmente eles fracassam em suas histórias pessoais. No caso de Sansão – um dos juízes citados – não foi diferente, senão vejamos:

  • Tornou-se nazireu por reivindicação divina
  • Recebeu um dom que qualquer homem de qualquer época gostaria de ter: uma força extraordinária que o tornava imbatível
  • Matou um leão apenas com as mãos
  • Arrancou as portas de uma cidade, levando-as nas costas por mais de 64 km, de Gaza a Hebrom
  • Matou mil soldados com uma queixada de jumento
  • Incendiou toda a plantação dos seus perseguidores
  • Prevaleceu sobre muitos homens

Se a análise findasse aqui, nestes tópicos cheios de retumbantes realizações, certamente a afirmativa acima estaria errada. Porém os aspectos internos (psicológicos) da vida de Sansão – que poderiam muito bem caber num tópico de inteligência emocional – revelam exatamente o contrário.

Sansão, que, guardadas as devidas proporções, pode ser comparado a um colaborador superqualificado, teve que enfrentar a si mesmo na batalha mais difícil da sua vida. As lutas externas eram apenas um pano de fundo para as lutas internas, propostas por Deus.

Neste embate, colecionou muitas derrotas até alcançar o equilíbrio que permitiu que obtivesse vitória plena em todas as dimensões do ser. Em sua trajetória, teve que se deparar com grandes vilões, muito mais astutos que Dalila e os filisteus. Foram eles:

  • O mito da indestrutibilidade
  • O mito da intocabilidade
  • A realidade
  • O mito do herói

Vencendo o Mito da Indestrutibilidade

Sansão achava-se indestrutível. O fato de possuir vantagens “sobrenaturais” prejudicou mais que ajudou.  Todos conhecem histórias sobre grandes promessas do esporte que acabaram apenas na promessa. Muitos mitos do esporte terminaram a vida na miséria e sozinhos. Não conseguiram usar com equilíbrio o dom que os fazia singulares.

O Sansão que venceu os filisteus, no final da história, não era o mesmo do início: traído e cego. Em sua trajetória pelas montanhas e vales da Terra Prometida, Sansão deveria, como um participante dos alcoólicos anônimos, afirmar para si todos os dias: ontem eu não me exaltei e hoje eu não vou colocar na boca uma só gota do veneno da altivez, da arrogância, do idealismo exagerado. A despeito da bebida, esse era o verdadeiro voto de obediência que deveria permear sua vida. Certamente a ruína de um herói nos ensina infinitamente mais que as suas inúmeras vitórias.

O trabalhador superqualificado depara-se com os mesmos problemas. Há necessidade de equilíbrio. A “Dalila” da sua vida pode ser tanto a empresa quanto a sua equipe ou os seus superiores. É necessário usar o dom, o talento, na justa medida, no momento e local apropriados, de forma a potencializá-lo para gerar valor. Se um dom não gera valor ou gera valor apenas para si mesmo, não é digno de ser usado, pois a superqualificação pressupõe humildade, generosidade, compartilhamento, certo grau de doação, que constroem a base para o exemplo e levam à multiplicação e ao reconhecimento: resultados naturais diante de desempenho inquestionável.

Vencendo o Mito da Intocabilidade

Definitivamente, a vida não parece real quando é potencializada por forças extraordinárias. Esse privilégio de poder contar com favores “sobrenaturais” ou extraordinários acaba por desenvolver certa irresponsabilidade ou uma falsa noção de intocabilidade.  

Quando o ser humano se comporta assim, acaba ficando com a alma idiotizada. No caso de Sansão, os seus atos reforçam esta tese. Em muitos momentos da sua história, suas atitudes não combinaram com a força excelente dos seus músculos.  No bojo dessas idiossincrasias, parece não ficar muito claro aos “intocáveis” qual será a repercussão dos seus atos. Agem como se fossem crianças.

Sansão em muitos momentos se achou acima do bem e do mal. Cheio de caprichos, ele parecia brincar com os adversários e guardar para o último instante a última cartada, o golpe decisivo, contando sempre com a ajuda inequívoca do Espírito Santo. Talvez o fracasso fosse a única forma de este herói acordar da ficção e voltar para a vida real. Realmente, assim Deus permitiu: na última hora a força não apareceu e Sansão foi dominado!

É interessante observar dois momentos da história do jovem nazireu em que ele se revelou extremamente tolo, ingênuo, sendo facilmente ludibriado. A idiotização do herói é evidente nos episódios da revelação do enigma (para a mulher) e da revelação do segredo da sua força (para Dalila). Em ambos os casos, foi desnudado pela sagacidade de uma mulher. Tanta ingenuidade para alguém tão forte. Uma lição parece brotar naturalmente destes fatos: o poder pode idiotizar as mentes de pessoas despreparadas para exercê-lo.

O superqualificado, quando não está sendo exigido em tarefas realmente desafiadoras, tende a se achar acima da tarefa que lhe é exigida. Acha-se “sobrando” por estar numa função aquém dos seus dons. Este fato pode lhe gerar a falsa noção de poder que lhe faz perder a sensibilidade, tanto para a repercussão dos seus atos quanto para os atos simples da vida.

O superqualificado deve buscar sempre estar em contato com elementos de realidade que o ajudem a entender o contexto e a aguardar as melhores oportunidades para gerar valor através de tarefas simples, mas necessárias ao bom andamento de uma área. Estas são oportunidades preciosas para confirmar seu dom, independentemente se as tarefas estão aquém ou não de sua capacidade.

Ficar focado apenas em emoções que levam a falsas ideias pode gerar descontentamento e confusão no profissional superqualificado; isto pode culminar em atitudes ingênuas e equivocadas, frutos de uma falsa noção de poder.

Vencendo o Mito da Realidade

Sansão não foi derrotado por algo ou alguém com mais poder que ele. Foi derrotado pela realidade. Foi vencido nas coisas mais simples da vida, como a insistência manhosa de uma mulher.

Em contrapartida, tudo o que ele fez foi em grande estilo. Era um homem tão acostumado com prodígios que acabava entediado quando estava diante de coisas comezinhas. Não conseguia viver como qualquer mortal. Perdia a paciência com aquilo que é comum da vida.

O juiz de força espetacular não entendia que é preciso viver a vida como se Deus não fosse realizar milagre algum, pois os milagres não dizem respeito à vida comum. São parte do mundo e da vida de Deus. Se acontecerem é porque há uma razão sempre bem maior que o benefício individual.

Quem vive esperando por milagres, torna-se um irresponsável. Torna-se uma pessoa que não vive pela fé, na verdade um leviano.

Elienai Cabral Júnior

Fazendo um paralelo, o trabalhador superqualificado crê em sua superqualificação como algo miraculoso, capaz de solucionar todos os problemas que a tarefa exige. Seu cotidiano está sempre muito próximo do mito do herói. Quando não se sente desafio por uma tarefa mais complexa, tende a desprezar as tarefas mais simples, por se sentir “sobrando” na função. Mas a vida está constantemente mudando as perguntas, quando todas as respostas já são conhecidas. Não é este o ditado popular?

Alguns milagres acabam não acontecendo. Então o superqualificado vai vivendo sua própria ficção, rumo a uma tragédia pessoal, uma vez que é baseada em buscas egocêntricas e equivocadas.

Pessoas com uma vida repleta de milagres acabam se desumanizando e fracassando. Devem andar com atenção, buscando vivenciar detalhes tais como perseverança, companheirismo, renúncia, amizade, fidelidade e discernimento. Estes itens não devem parecer insuportáveis, já que fazem parte da vida comum. O superqualificado deve buscar uma lucidez, uma leitura diferenciada do cotidiano, que o faça evitar cair no “canto da sereia”, na artificialidade da própria ficção que é alimentada pelas suas “verdades” mais íntimas.

A história de Sansão é marcada pela artificialidade. Em detrimento da realidade, colecionou vitórias que não eram de fato reais. A única vitória de verdade aconteceu apenas no final, quando venceu os filisteus, estando cego e fraco.

Naquele momento, vence-os com poucas palavras, sem espetáculo. Não havia arrogância em seus atos, nem queria impressionar a si mesmo. Sansão venceu os filisteus não para ser um vencedor, mas para cumprir a sua missão: tornar seu povo livre.

Ele venceu, mas não viveu para ver a vitória. Foi mais vencedor na morte do que na vida. Apesar de sua história ser, de um modo geral, um exemplo do desperdício da força concedida por Deus em buscas egocêntricas, o agora homem nazireu derrubou as colunas da ficção para viver a sua própria realidade, que incluía dor e morte. Com uma visão realista do mundo, mesmo que tardia, conseguiu, por poucos segundo que fosse, antes de ser coberto pelo peso das pedras, viver em paz consigo mesmo e com Deus.

Vencendo o Mito do Herói

Os mitos anteriores – da indestrutibilidade, da intocabilidade e da realidade – estão visceralmente interligados ao mito do herói. Tais mitos geram a idealização exacerbada da pessoa humana. Tal idealização acaba por roubar a liberdade do ser, que se sente refém das expectativas que lhe foram impostas. A pessoa, nestas condições, se sente aprisionada, tolhida, amarrada às verdades que tem que sustentar para manter a própria fantasia ou o sonho que os outros têm dela.

A história de Sansão contém esses ingredientes. O povo nutria uma grande expectativa pelo “salvador da pátria”. Em Sansão convergiam todos os predicados de um herói. Ele próprio, embalado pela admiração do seu povo, que o elegeu juiz exatamente pelos seus atos de bravura, também passou a se ver como um herói, nutrindo essa autoimagem por longos anos. Seus atos atestam isto e o fizeram se enredar em suas próprias tranças, permanecendo escravo da culpa de não conseguir atender às expectativas.

Assim acontece quando os filhos são exageradamente idealizados pelos pais, quando os relacionamentos são fantasiados, dando lugar a decepções por não se alcançar o nível da perfeição. O faz-de-conta que se estabelece é diametralmente oposto ao que é ansiosamente esperado, pois não encontra respaldo no ser, mas é sustentado por máscaras que aprisionam e sufocam.

Seres humanos são falhos, são projetos inacabados, não combinam com idealizações que acabam arruinando esperanças. Precisam de espaço para errar, cair e levantar, e novamente cair, se auto inventar.

É importante observar que Deus não impôs a Sansão esses padrões, nem impôs uma tarefa, mas sim uma caminhada que o levaria a um grau de excelência como ser humano. Assim as empresas e os líderes devem agir com os superqualificados, propondo-lhes caminhos para o autoconhecimento, perspectivas de crescimento, que o farão apurar o dom e consequentemente atingir ou até mesmo superar os resultados esperados.

Uma alternativa intermediária entre os caros e complexos planos de carreira dos anos 80 e o “cada um por si” do início do milênio, não está apenas no plano de retenção dos “key-people”, hoje praticado, mas também numa proposta baseada na Teoria da Expectativa de Victor Vroom, que seria tentar responder a três anseios de uma pessoa que desenvolve determinada tarefa:

ANSEIO

DEFINIÇÃO

NA PERSPECTIVA

DA HISTÓRIA DE SANSÃO

Valência
Demonstrar claramente ao empregado o valor da atividade que ele realiza, associando-a a um valor provável de redução de custo, de aumento de receita ou de percepção de qualidade para a empresa; A história de Sansão nos ensina que é muito fácil perdermos o foco daquilo que nos propusemos a fazer.  O valor a ser agregado com a tarefa é a razão da própria tarefa e não deve ser negligenciado ou esquecido, mas reforçado em cada atitude.
Instrumentalidade
Dar ao profissional uma percepção clara da compensação que terá se alcançar um certo resultado, além de uma nítida possibilidade de passar a um próximo degrau na organização se mantiver este nível de resultados por certo tempo (esta é a luz no fim do túnel); Deus fez Sansão entender, de maneira inequívoca, o valor de sua missão, que era muito maior do que julgar as questões do povo (juiz), mas ser ele próprio o instrumento para a justiça de Deus.
Expectância
Mostrar ao ocupante do cargo que determinado tipo de comportamento e forma de realizar sua atividade tem alta probabilidade de levar a um resultado desejável. Sansão, além de praticar e treinar (repetidamente) uma ação, buscou mudar seu comportamento diante daquela ação. Deus forjou seu caráter para que a ação levasse inevitavelmente, através da fé, ao resultado desejado.

Diante do exposto, pode-se concluir que, se uma empresa ou líder tiver a verdadeira noção dos desafios que pessoas superqualificadas enfrentam, tanto no âmbito emocional quanto no profissional, poderão estar mais aptas a desenvolver formas de potencializar tais recursos. Desta forma, um profissional superqualificado poderia passar por qualquer função, de forma motivada e por um tempo maior que o normalmente esperado.

Após os eventos relatados na história de Sansão, houve a organização do reino de Israel, sob a liderança de Samuel, Saul e Davi, mas essa é outra história…

Referência Bibliográfica

CABRAL JUNIOR, Elienai. Salvos da Perfeição. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2009. Pg. 35-42

HALLEY, Henry Hampton. Manual Bíblico de Halley. São Paulo: Editora Vida, 2001.

MANUAL BÍBLICO SBB; tradução de Lailah de Noronha. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.

Bíblia de Estudo Defesa da Fé: questões reais, respostas precisas, fé solidificada. Rio de Janeiro: CPAD, 2010.

O´Connell, Andrew. The Mith of the Overqualified Worker. In: Harvard Business Review. Dezembro de 2010. Disponível em http://hbr.org/2010/12/the-myth-of-the-overqualified-worker/ar/. Consultado em 16/04/2011.

BERGAMINI, Cecília Whitaker e BERALDO, Deobel Garcia Ramos. Avaliação de Desempenho Humano na Empresa. 4a. edição. São Paulo: Editora Atlas, 1988;

VROOM , Victor Harold. Work and Motivation. New York: Originally published, 1994.

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